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sábado, 29 de setembro de 2012

“OS BARES ESTÃO CHEIOS DE ALMAS TÃO VAZIAS” - texto sobre a indiferença, individualismo, homofobia e naturalização da violência em são paulo.



Madruga de sábado para domingo (22 e23/09/2012). Eu e uma amiga chegamos no Estadão, tradicional bar na região central da cidade (de São Paulo) conhecido, dentre outras coisas, por ser um point boêmio e por seu atendimento 24h . O estabelecimento estava lotado, em plena 3 horas da madrugada. Do lado de dentro do balcão os funcionários corriam freneticamente de um lado para outro num atendimento caótico. Só pedimos uma água e fomos categoricamente ignorados. Mas não escrevo este para falar do atendimento tampouco de “direitos do consumidor”. O caso é mais grave. Trata-se de direitos humanos. Quinze minutos depois, ainda a espera de uma simples garrafa d’água, entra um homem, alto, branco, na casa dos 30 anos, falando alto e um tanto transtornado. Achei que fosse alguma reclamação pelo atendimento dos balconistas (já que tinha presenciado uma reclamação de um cliente minutos antes). Chamou-me a atenção quando o homem apontou pra mim e disse “eu estava sentado bem ali” – exatamente onde eu estava sentado naquele momento. Vi que não se tratava de uma discussão pelo mal atendimento. O homem tinha o olho esquerdo inchado e roxo, indício irrefutável de que tinha sido agredido. Emprestei toda a atenção ao caso. Disse o homem que tinha acabado de ser esmurrado por um outro homem que estava ao seu lado. Alegou que o restaurante teria facilitado a saída do agressor para evitar maiores transtornos (como a chegada da polícia, por exemplo). O balconista disse friamente “eu disse para você não responder”. Indignado, o homem pediu ajuda a todos que ocupavam aquele lugar lotado. Nesse momento este homem foi agredido novamente. Dessa vez pelo individualismo exacerbado paulistano. As pessoas continuavam a comer, rir, ler seu jornal. Era como se aquele homem não existisse. Como se não fosse grave a sua denuncia. Os que não o ignoraram, riram dele. Diziam: “chama o Datena”, “chama o aqui agora”. Riram de um homem que tinha sido agredido! Uma moça se manifestou, pois estava incomodada com o fato do homem agredido estar falando alto bem próximo ao ouvido dela. Histericamente reagiu dizendo que não tinha nada haver com isso, sinalizando que não queria ser importunada (novamente a merda do individualismo). A atitude dos presentes foi um ato de violência tão dilacerante quanto o soco que levou. O homem sai desolado do bar. Eu e minha amiga saímos (nem precisamos cancelar o pedido, pois fomos categoricamente ignorados pelo péssimo atendimento do local). Ela e eu ficamos indignados com a mesquinhez tacanha daquela gente “sofisticada” da noite paulistana. Lembrei de uma frase do cantor Criolo “os bares estão cheio de almas tão vazias” na clássica música “Não Existe Amor em SP”. Fomos conversar com o rapaz. Ele estava ligando reiteradamente para polícia e já estava a quase 30 minutos esperando uma viatura. Desabafou conosco: “sou gay e conversava com um ex-namorado ao celular. O homem ao meu lado deve ter escutado a conversa se sentiu incomodado. Achou que estava falando com ele. Eu disse que não tinha nada haver com ele, que a conversa não era com ele”. Foi o suficiente para que o agressor lhe desse um murro no olho e fugisse rapidamente, ajudado pelos funcionários do bar que agilizaram o fechamento da conta e sua retirada. Fomos a uma delegacia que fica num cruzamento da avenida augusta, região do centro de São Paulo. Não havia escrivão no plantão. Aliás, nunca há, pois naquela delegacia não possui plantão noturno. Num lugar onde existe uma vida noturna intensa, isso me espantou. Já, na delegacia a alguns quarteirões dali, num bairro nobre, havia dois escrivães de plantão. Realmente nossa cidade é planejada de acordo com o capital. Aconselhamos que fosse pra casa (ele estava emocionalmente transtornado) e que logo cedo fosse fazer o exame de corpo de delito e o registro da agressão. Antes de nos despedirmos,o homem agredido nos disse com uma estranha “alegria”, com os olhos imbuídos em lágrimas: “ainda bem que eu estou VIVO!”. Alguma coisa de muito errada acontece numa sociedade quando pessoas são violentadas por serem quem são (mulheres, negras/os, gays, lésbicas, transgêneros, etc) e se sentem aliviadas de por não ter acontecido algo pior. Alguma coisa de errado acontece numa sociedade quando a violência torna-se algo natural, quando não, legitimada pelo preconceito generalizado e enraizado no senso comum. Pior ainda quando os agredidos se sentirem aliviados por estarem VIVOS! Nos despedimos. Minha amiga e eu ficamos consternados. O homem nos agradeceu simplesmente por termos dispensado a ele um tratamento HUMANO! Teve de tudo naquela noite : homofobia, indiferença, individualismo, naturalização e legitimação da violência, enfim. Enfrentamos tempos difíceis, de copos cheios e almas vazias.

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