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terça-feira, 23 de outubro de 2012

De Cesare Lombroso a José Serra: o controle das “classes perigosas”



Século XIX

Cesare Lombroso
No final do século XIX, o médico e psiquiatra Cesare Lombroso, por meio da sua antropologia criminal, tentou estabelecer uma correlação entre criminalidade e características físicas baseada na frenologia (medição do crânio) e na antropometria (mensuração do corpo humano ou de suas partes)  com objetivo de demonstrar a relação entre essas características físicas dos indivíduos e sua capacidade mental e propensões morais. Em várias obras de sua autoria, tais como “Gênio e Loucura”, “O homem delinquente”, “O delito”, etc., Lombroso disseminou a ideia de que o criminoso não é totalmente vítima das circunstâncias sociais e educacionais desfavoráveis. Pelo contrário. Afirma que ele sofre do que definiu como  “Tendência atávica”, hereditariamente para o mal. O delinquente é doente; a delinquência é uma doença que pode e deve ser prevenida. Para Lombroso “o criminoso é geneticamente determinado para o mal, por razões congênitas. Ele traz no seu âmago a reminiscência de comportamento adquirido na sua evolução psicofisiológica. É uma tendência inata para o crime”.  
Por meio de teoria da Criminologia descreveu um conjunto de características físicas e morais do que chamou de “delinquente nato”, ou seja, aqueles que tem propensão natural para criminalidade. Dentre as características corporais do homem delinquente estão: a testa fugida, arcos superciliares excessivos, nariz torcido, lábios grossos, arcada dentária defeituosa, braços excessivamente longos, mãos grandes, anomalias dos órgãos sexuais, orelhas grandes e separadas, tamanho da mandíbula, conformação do cérebro, estrutura óssea e a hereditariedade biológica referida como atavismo.  As características morais, segundo o autor, são: insensibilidade à dor, tendência a tatuagem, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo e agressividade.  
Baseado nessas características, Lombroso não só identificava o criminoso em potencial como também defendia medidas preventivas dos portadores destas, tais como o  isolamento do convívio social e a prisão perpétua, visto que esses indivíduos eram criminosos natos e irrecuperáveis.
Apesar da natureza inconsciente de suas teorias, pois não se sustentavam para além da esfera do estereótipo, Lombroso foi muito influente, tanto na Europa quando no Brasil entre criminologistas, juristas e antropólogos.  Nesse mesmo período, o racismo cientifico, (justificava biológica para a soberania do branco europeu frente a uma suposta inferioridade dos indivíduos de outra origem étnico-racial)  estava em alta. Aqui no Brasil essas teorias influenciaram tanto nosso código penal que resultou em praticamente 100% da população carcerária composta por negros e mestiços, o mesmo índice se repetindo para as internações compulsórias dos primeiros hospitais psiquiátricos.
Isso porque nossos legisladores, juristas e agentes públicos de segurança entendiam que a degeneração moral vinha da mistura social e consanguínea das "raças impuras”. Esse pensamento condicionou (e até hoje condiciona) práticas racialmente tendenciosas de identificação de suspeitos baseadas no construto social do  “criminoso padrão”, aos moldes da teoria de Lombroso. Daí o motivo da perseguição, coerção, prisão, condenação e execução preferencial de jovens negros por agentes do estado (policiais, delegados, juízes, promotores, etc.).

Século XXI

José Serra
Na data do dia 22/10 de 2012, dias antes da eleição municipal do segundo turno para prefeitura de São Paulo (prevista para 28/10), a rádio CBN promoveu um levantamento de perguntas feitas pelos ouvintes para os candidatos Fernando Haddad do PT e José Serra do PSDB. Uma das perguntas feita para ambos foi: "Qual o projeto dos candidatos para combater a violência e o consumo de drogas dentro das escolas, além de restabelecer o respeito dentro de sala de aula". Haddad propõe como solução o ensino de período integral, conciliando medidas culturais e esportivas ao ensino tradicional. Agora, reparem na resposta de José Serra acerca da mesma questão: 

“Nos vamos combatê-la em parte por prevenção. Fizemos uma parceria com a Fundação Casa pra atuar nos jovens que estão dentro da escola e que ainda não entraram no crime mas que podem ter propensão pra isso. Vamos fazer com eles um trabalho preventivo. Identificar quem tem um potencial para ir pro crime ou para ir para droga e fazer um trabalho de acompanhamento, de monitoramento e de ajuda a esses jovens. Não são apenas medidas de segurança, são medidas preventivas”. (clique aqui e ouça o pronunciamento de José Serra na íntegra) 

Qualquer semelhança com as teorias de Cesare Lombroso NÃO É MERA COINCIDÊNCIA! As medidas preventivas forjadas por Lombroso são idênticas as de José Serra: prevenir o desenvolvimento da marginalidade em indivíduos com potencial para criminalidade. Firmar parceria com a Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), órgão que cuida de jovens de 12 a 21 anos que cometeram (e não que podem cometer) alguma infração, resgata as ideias de Lombroso de se precaver do criminoso através do "diagnóstico precoce" do indivíduo considerado desviante. Assim como uma doença, essa propensão para delinquência deve ser “prevenida” antes de ser desencadeada.
Para Serra, a questão educacional deve passar pelo campo perigoso da atribuição de um rótulo de marginalidade conferido a alguns jovens com características pré-definidas (sob critérios escusos) e resolvido como caso de polícia ou de policiamento preventivo contra um suposto "potencial criminoso" em detrimento a medidas sócio educativas adequadas. 
Howard Becker em sua obra "Los extraños - sociología de la desviación" descreve que "os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais. (...) o desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito a dita qualificação (etiqueta)". Segundo Ana Luíza P. Flauzina em sua obra "Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro" afirma que "não existe condutas desviantes em si ou indivíduos delinquentes por suas características pessoais e posição na piramide social, mas sim a criminalização é construída com base numa classificação de condutas por determinado nicho social que impõe o catálogo a todos os membros da sociedade". O que Flauzina e Becker querem dizer é que o cometimento de uma prática transgressora em si não é suficiente para caracterizar a criminalidade. Ainda segundo Flauzina "o criminoso passa a ser aquele exposto a uma rotulação das categorias construídas como crime". Ou seja, ao se criar um estereótipo do “aluno com propensão a criminalidade e usuário de drogas”, Serra atualiza uma teoria preconceituosa, racista e xenofóbica: estereotipar jovens, distinguindo-os de seus pares pela atribuição de características que justificam sua segregação da sociedade pelo risco nato que lhes são atribuídos. Além disso, observasse um faceta perversa ao se instituir um tipo de exclusão moral dos alunos indisciplinados, ou seja, apartá-los do limite das regras e valores morais.  Segundo Maria Aparecida Silva Bento, em seu artigo “Branqueamento e branquitude no Brasil”, "o primeiro passo da exclusão moral é a desvalorização do indivíduo como pessoa e, no limite, como ser humano".  Para essa autora “os excluídos moralmente são considerados sem valor, indignos e, portanto, passíveis de serem prejudicados ou explorados (...) A exclusão moral pode assumir formas severas, como o genocídio; ou mais brandas, como a discriminação. Pelos processos psicossociais de exclusão moral, os que estão fora do nosso universo moral são julgados com mais dureza e suas falhas justificam o utilitarismo, a exploração, o descaso, a desumanidade com que são tratados”.
José Serra revive o pensamento positivista da criminologia Lombrosiana do século XIX e, porque não dizer, reascende a chama do racismo cientifico, visto que a alcunha de “criminoso potencial”  incide prioritariamente (e não coincidentemente) na parcela pobre, majoritariamente parda, negra, mestiça. Segundo Sueli Carneiro “há quem vê nas crianças negras a ‘semente do mal’, como o fez certa vez, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, defendendo a descriminalização do aborto para mulheres faveladas, pois seus úteros seriam 'fábricas de marginais'” (demonstração de que Sérgio Cabral Filho, governador do Estado do Rio de Janeiro pelo partido PMDB, também  está afinado com desígnios do racismo moderno). Inclui-se nesse balaio de gato os nordestinos, bolivianos, adeptos de religiões marginalizadas, etc. Resumindo: toda ordem de indivíduo que se enquadre no que os moradores de Higienópolis chamam de “gente diferenciada”.
O que o candidato tucano propõe contribui para o construto social do estereótipo de “criminoso padrão” gerando uma suspeição antecipada desses indivíduos a partir da criação de uma medida estigmatizante que tende a reduzir ainda mais as expectativas (já bastante reduzidas) dos alunos problemáticos, selecionando os “bons” dos “maus” pelo rótulo de “criminoso potencial” atribuído a jovens em fase de formação. 
A proposta do tucano pode abrir um canal perigoso para que a agressividade da classe média contra as classes pobres (entendidas como perigosas) se dirijam contra esse inimigo comum (a outra raça, o imigrante, o estrangeiro não europeu e não branco).
Não se trata da defesa de alunos reconhecidamente violentos e desrespeitosos. Não estou fazendo de conta que a violência e o uso de drogas em ambiente escolar não sejam um problema grave que devem ser resolvidos, tampouco sugerindo ideias paternalistas para essa questão grave. O que faço aqui é questionar da proposta de Serra como solução para o problema num contexto de uma sociedade complexa, heterogênea e desigual. A meu ver, o grande equivoco do plano de Serra para resolução do problema é que sua proposta reflete anseios das alas mais conservadoras, ávidas por medidas mais duras para crimes cometidos por classes sociais menos abastadas tais como pena de morte, redução da maioridade penal e todo tipo de política pública que vise “cortar o mal pela raiz”. Essa proposta também converge satisfatoriamente com pensamento da extrema direita que corteja ações de cunho nazi-facista. 
O que está incutido na proposta de José Serra é uma política de controle social das classes sociais consideradas perigosas pela elite econômica,  que visa, fundamentalmente, o bom funcionamento da ordem econômica liberal, a satisfação dos interesses do capital e o bem-estar e “proteção” dessa elite econômica paulistana.  A medida em que se diferenciam os alunos problemáticos sobe o pretexto da identificação de um "potencial" extremamente negativo e incapaz de ser mensurado ou definido sem a utilização de estereótipos preconceituosos (aos moldes forjados por Cesare Lombroso),  cria-se dentro de um ambiente institucional como a escola um controle seletivo dos considerados incômodos politicamente, passando a  representa-los como “seres perigosos”, verdadeiras ameaças sociais. A parceria com a fundação CASA sugerida por Serra só serve de reforço para o senso comum elitista que enxerga  os pobres como bandidos potenciais e, além disso, desnecessários economicamente, pois são despreparados e dificilmente conseguirão obter emprego. Serra reflete a paranoia da da classe média que projeta seu medo no outro (não pertencente a essa classe), representando-os como arautos do mal. A "prevenção" de Serra pode servir de pretexto para uma verdadeira caça aos “culpados”, além de fornecer argumentos “legais” para dissimular o racismo e a xenofobia incutida na rotulação de criminoso. Para Maria Aparecida Silva Bento “essa projeção pode estar na gênese de processos de estigmatização de grupos que visam legitimar a perpetuação das desigualdades, a elaboração de políticas institucionais de exclusão e até de genocídio”. 
As teorias de Lombroso perderam credibilidade científica ao longo das décadas, mas suas ideias não abandonaram o subconsciente daqueles que alimentam todo tipo de preconceito. Infelizmente já tivemos pessoas com esse viés de pensamento na administração do município. Cabe agora torcer e agir para que a cidade não cometa o mesmo erro.


Referência Bibliográfica:
O livro: “CORPO NEGRO CAÍDO NO CHÃO: O SISTEMA PENAL E O PROJETO GENOCIDA DO ESTADO BRASILEIRO” de Ana Luiza Pinheiro Flauzina.  Rio de Janeiro: contraponto, 2008.

O artigo: “BRANQUEAMENTO E BRANQUITUDE NO BRASIL” de Maria Aparecida Silva Bento presente no livro “PSICOLOGIA SOCIAL DO RACISMO”.

Este artigo está disponível no link:
http://www.ceert.org.br/premio4/textos/branqueamento_e_branquitude_no_brasil.pdf


Fontes pesquisadas:
Sobre Cesare Lombroso
http://www.umarizalnews.com.br/2012/03/as-teorias-de-cesare-lombroso.html

Para ouvir a resposta de José Serra na Rádio CBN CLIQUE AQUI

2 comentários:

Jorge Ramiro disse...

Foi demonstrado que o positivismo era uma ficção. Hoje nenhum sentido continuar com isso. Eu tenho ums restaurantes em higienópolis e sou a favor da diversidade cultural.

Ricardo Tadeu Sá Teles disse...

Cara, eu procuro respeitar os caras da direita, não julgá-los pelos erros que sei que a esquerda também comete, separar o joio do trigo, os conservadores dos mal intencionados, mas esse JOSÉ SERRA, cada vez me surpreende mais. Vou falar um preconceito, você que me perdoe, mas ele me parece a própria encarnação do mal!!! Não só por estar preso a uma visão de mundo que, como seu texto mostra, já não há mais quem defenda; mas também por ser alguém que pisa em quem está a sua volta, até mesmo do seu partido, para acessar o poder. O que esse homem fará se um dia chegar lá? Sabe, acho que Hitler foi resultado do interesse de uma parcela significativa do povo alemão que, se não era maioria, pelo menos soube se impor. Os votos que vejo o Serra tendo, ano após ano, pra mim denunciam um humor perverso presente na sociedade brasileira. Ele "representa" muita gente e isso é de dar medo...